DO HINDU (SOBRE O OBJETIVO DA ANÁLISE SOCRÁTICA)


-Sócrates, penso ser sincero em relação ao escopo do seu trabalho. Examinando e compartilhando com amigos e interessados os fenômenos humanos. Mas para mim, meu caro, é obscuro compreender e agir desse modo. Pois como pode um homem mergulhar a fundo nos fenômenos humanos quando ele ignora os fenômenos divinos? Chega a ser engraçado. Não estaria, Sócrates, você indo pelo caminho contrário nessas pesquisas ou algo pior, dedicando boa parte de sua vida e seus esforços nesse objetivo?

-Agradeço pelas suas palavras, caro estrangeiro, tanto pelo elogio como por sua preocupação com minha pessoa. Afinal, o que pode haver de mais triste ou frustrante na vida de um homem que saber, após muitos esforços, está seguindo em verdade no caminho contrário? É sem dúvida de suma importância o que nos trouxe. Tentemos, meu amigo estrangeiro, em conjunto encontrar a via correta. Pois como diz o poeta:

Quando são dois, se um não vê, o outro logo percebe o caminho.

-Podemos ir até o porto enquanto conversamos, Sócrates. Lá também preciso encontrar um conhecido para os preparativos do meu retorno, caso não se importe.

-Caminhemos, mas sob uma condição.

-Diga.

-De responder aquilo que lhe for perguntado.

-Sem dúvidas, Sócrates.

-Então vejamos, caro estrangeiro. Por mim mesmo, conforme suas palavras, tenho por costume investigar fenômenos humanos ou, eu próprio poderia lhe dizer, que o objetivo de minhas indagações está no que se faz em casa de mal ou de bom. Todavia você questiona: “Como perscrutar os fenômenos humanos quando se ignora os divinos, Sócrates?” Foi essa a pergunta, estrangeiro?

-Sim, Sócrates, isso acabei de lhe indagar.

-E me perguntando não está me dizendo o mesmo quê: “Sócrates, antes dos fenômenos humanos é preciso apreender os celestes”?

-Diria que sim, isto mesmo foi dito.

-E acredita você serem os deuses superiores ou inferiores aos humanos?

-Superiores, muito superiores.

-E os humanos inferiores?

-Consequentemente, Sócrates.

-Pergunto-lhe, pois desejo ter isso nítido.

-Tudo bem.

-Voltemos. E os homens inferiores?

-Sim, consequentemente.

-E sendo os deuses superiores, não seriam mais complexos? Tal como um sapateiro fazendo os melhores sapatos são estes mais complexos em relação aos sapatos inferiores de má qualidade?

-Não sei como da natureza divina você desceu até o sapato dos homens, Sócrates.

-Apenas diga, meu amigo.

-Digo-lhe que sim, mais complexos.

-E sendo mais complexos, não seriam mais difíceis?

-Do complexo ao menos, o que há de mais difícil estaria mais próximo, acredito, do complexo.

-Que seja. Consequentemente inferior ou menos complexo será o fácil.

-Não sei, Sócrates.

-Ainda que você ignore ou simplesmente não queira dizer, o raciocínio nos força a pensar assim.

-Sem palavras, Sócrates, vejo-me impotente diante de tal raciocínio.

-Eu também, meu amigo. Logo sendo os Deuses superiores aos homens e os homens inferiores aos Deuses, são estes mais difíceis que aqueles de serem compreendidos ou de alguém vier a apreender conhecimento sobre a natureza dos deuses. Ademais, não se furte a questão, responda com franqueza: sendo tu um sábio, ao compartilhar um pouco de sua sabedoria, o faz abordando o que há de mais complexo ou começa por explica o mais acessível à compreensão dos demais?

-Aos meus alunos ensino do básico ao mais difícil, não tem como ser diferente, Sócrates. Pois do contrário eles nem compreenderiam.

-Continuemos, pois como falam, “ensinar é mais fácil para quem sabe”. Diga-me, sendo você um sábio em Atenas, acredita que também o ensino de nossos jovens é do mais difícil ao mais fácil, o mais complexo ao menos ou o contrário?

-Teria que fechar os olhos ou tapar os ouvidos para não saber que aqui também é do mesmo modo, Sócrates. Pois percebo ensinarem naturalmente o que há de mais fácil, as primeiras letras, para depois o mais complexo.

-Pois bem, e nos outros lugares, haveria de ser diferente?

-Penso que não, se for a compreensão o objetivo, Sócrates, seja aqui em Atenas, seja na minha terra ou em qualquer outro lugar, não há outro caminho.

-Logo, meu amigo, o raciocínio nos mostra que para compreendermos algo precisamos ir do mais fácil ao mais difícil, do mais complexo ao menos complexo. Seja no que diz respeito ao ofício sapateiro, a educação das crianças ou no fim, aos fenômenos humanos em comparação com a natureza divina. Não sendo esse o procedimento deveremos rever os argumentos a começar, entre outras coisas, por tentar considerar os homens superiores aos Deuses, um raciocínio que não vejo como se sustentar. Todavia, sendo você um sábio que irrompe na gargalhada quando analisam inicialmente a natureza humana, estrangeiro, talvez enxergue um caminho.

-Sócrates, estou enxergando o homem que lhe falei, um amigo meu. Ele vai me ajudar com os preparativos da viagem de retorno. Devo me apressar. Depois, quando vier novamente, terminaremos a conversa.

-Está bem, devo ir, possuo também alguns quefazeres.

-Quais, Sócrates?

-Continuar examinando os homens, pois não julgo ter aprofundado suficiente os conhecimentos humanos para me intrometer no que aos deuses pertence. 


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