Ainda que Sócrates seja um dos filósofos antigos
mais populares na atualidade, observamos, por vezes, certas informações e
relatos referentes à sua vida não condizendo em nada com os testemunhos
históricos e nem mesmo com uma análise racional séria sobre sua vida.
Uma dessas "pérolas" ditas sobre Sócrates
é falarem que o mesmo não sabia ler e nem escrever. Alegam os
"eruditos" que Sócrates não deixou nada escrito, por conseguinte, a
leitura e a escrita eram, dizem eles, estranhas ao filósofo que limitava,
assim, a difusão de sua sabedoria ao uso da palavra por meio do diálogo.
Tal ideia ou maneira de pensar só corrobora a
ignorância de quem a adota. Afinal de contas, basta, para começarmos, uma
leitura simples dos diálogos platônicos ou uma análise um pouco mais atenta da Memorabília de Xenofonte, obras de fácil
acesso ao público, para conhecermos a verdade.
Dando um passo inicial com Platão e sua Apologia de Sócrates, podemos destacar um
trecho que nos auxiliará nesse tema. Sócrates, no texto de Platão, antes de
começar a sua defesa e com a intenção de ordenar as ideias, lê a ata de
acusação. Dizendo:
"Prossigamos,
então, e recapitulemos, de início, qual é a acusação, de onde nasce a calunia
contra mim, baseada na qual Meleto me moveu esse processo.
Vejamos
o que diziam os caluniadores ao caluniarem-me. É necessário ler a ata da acusação jurada por estes
acusadores: -Sócrates comete crime, investigando indiscretamente as coisas
terrenas e as celestes, e tomando mais forte a razão mais débil, e ensinando
aos outros. -Tal é, mais ou menos, a acusação." (Apologia de Sócrates)
Bastaria isso, por si mesmo, ainda que pouco, para afastar
a ideia de Sócrates como ignorante em relação à leitura. Contudo, examinemos
outra obra de Platão que deixará ainda mais nítido o dito na Apologia.
No Fédon, diálogo sobre a alma, temos Sócrates
compondo versos, fábulas e um hino a Apolo. Vejamos na integra as palavras do
filósofo ao conversa sobre isso com um de seus discípulos, ou melhor dizendo,
companheiros, tendo em vista que ele não se intitulava mestre de ninguém.
Assim, Cebes, começa dizendo:
Cebes:
-Por Zeus, Sócrates, foi bom me haveres lembrado isso! De fato, a propósito
dessas tuas composições, em que transpuseste para o metro cantado os contos de
Esopo e o hino a Apolo, várias pessoas já me têm perguntado- e entre elas, há
pouco tempo Eveno- com que intenção as compuseste depois de tua chegada aqui
[...].
Sócrates:
-Dize-lhe a verdade, Cebes: não foi com a intenção de lhe fazer concorrência, e
muito menos às suas composições, que fiz
aqueles versos: sei que isso teria sido difícil!Eu os fiz em virtude de certos
sonhos, cuja significação pretendia assim descobrir, e também por escrúpulo
religioso- prevendo, sobretudo,a eventualidade de que as repetidas prescrições
que me foram feitas se relacionassem com o exercício dessa espécie de poesia.
Eis como se passaram as coisas: Várias vezes, no curso de minha vida, fui
visitado por um mesmo sonho; não era através da mesma visão que ele sempre se
manifestava, mas o que me dizia era invariável: "Sócrates", dizia-me
ele, "deves esforçar-te para compor música!" E, palavra! sempre
entendi que o sonho me exortava e me incitava a fazer o que justamente fiz em
minha vida passada. Assim como se animam corredores, também pensava eu, o sonho
está a incitar-me para que eu persevere na minha ação, que é compor música:
haverá, com efeito, mais alta música que a Filosofia, e não é justamente isso
que eu faço? Mas sucede agora que, depois de meu julgamento, a festa do Deus
está retardando a minha morte. O que é
preciso então, pensei, no caso de que o sonho me tenha prescrito então essa
espécie comum de composição musical, é que eu não lhe desobedeça; é que eu
componha versos. E, de fato, é muito mais seguro não me ir sem antes ter
satisfeito esse escrúpulo religioso com
a composição de tais poemas, nem antes de haver prestado obediência ao sonho. E,
por isso, minha primeira composição foi dedicada ao Deus em cuja honra estava
sendo realizado o sacrifício.[...] (Diálogo Fédon)
A extensão dessa citação não é das mais usuais, mas
fez-se necessário tendo em vista a compreensão das palavras nessa passagem do
diálogo. No entanto, voltando ao assunto, como havíamos dito, temos Sócrates
aqui não apenas escrevendo, mas também compondo.
Em acréscimo, no mesmo diálogo, Sócrates demonstra
mais nitidamente seu domínio sobre a leitura quando fala sobre a física, mas
especificamente sobre a geração e a corrupção. Nesse momento ele relata sua
juventude, quando conheceu as ideias do filósofo naturalista Anaxágoras e as expectativas
alimentadas ao pensar que saberia, lendo suas obras, a causa inteligível de
tudo o que existe. Sócrates diz:
[...]Grandes
eram as minhas esperanças! Pus-me logo a
ler, com muita atenção e entusiasmo os seus livros. Lia o mais depressa que
podia a fim de conhecer o que era o melhor e pior. Mas, meu grande amigo,
bem depressa essa maravilhosa esperança se afastava de mim!. À medida que
avançava e ia estudando mais e mais, notava que esse homem não fazia nenhum uso
do espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem do universo [...] (Diálogo Fédon)
A meu ver, teríamos aqui por encerrada a questão.
Estou, no entanto, plenamente ciente da possibilidade de alguns indagarem sobre
a existência de outros testemunhos além desses encontrados nos diálogos
platônicos. Tomando por base outras, Xenofonte e seu Ditos e
Feitos Memoráveis de Sócrates (Memorabilia) também contribui para a intenção de nossas análises. Num
determinado momento da obra de Xenofonte, Sócrates aparece dialogando com o
jovem Eutidemo sobre as coisas justas e as injustas escrevendo, conforme conta
o autor, um "J" para as justas e um "I" para as injustas
citando depois exemplos a serem escritos embaixo de cada uma dessas letras a
partir daquilo que Eutidemo considerasse, objetivando assim mostrara ao jovem o
como pode estar equivocado em suas
considerações sobre a justiça e injustiça. O diálogo é esse:
-Por Zeus!-exclamou Sócrates- visas a maior e
a mais eminente das ciências. É a ciência dos reis, e por isso se chama ciência
real. Mas examinaste se é possível, sem ser justo, nela brilhar?-Sim, e creio
impossível, sem ser justo, ser bom cidadão. -Como buscar ser justo?-Em questão
de justiça, Sócrates, penso que ninguém me leva a lampas.-Terão os homens
justos suas funções, como os artesãos?-Claro.-Assim como os artesãos expõem
suas obras, não podem os justos dizer quais são as suas?-Como não!-Que mais
fácil que enumerar as coisas justas?O mesmo poderia fazer com as injustas:
haverá coisa mais comum? Queres, pois, escrevamos
aqui um "J" e ali um "I"? Em seguida colocaremos de baixo
do "J" o que nos parecer justo e o injusto de baixo do
"I".-Se achares necessário... (Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates)
Nisso, Sócrates prossegue escrevendo os exemplos que
vão surgindo no diálogo e colocando sob das respectivas letras conforme informa
Xenofonte.
Por fim, no que diz respeito aos testemunhos sobre a
vida do filósofo, fora dos exemplos deixados pelos socráticos, há outros que
também confirmam que Sócrates não apenas sabia ler como também escrever.
Afinal, dizem, a título de exemplo, que quando Eurípedes, o tragediografo,
deu-lhe a obra de Heráclito e perguntou o que Sócrates pensava a respeito da
mesma, sua resposta foi: "A parte que entendi é excelente, tanto quanto
atrevo-me a dizer- a parte que não entendi, porém seria necessário um
mergulhador délio para chegar ao fundo."
Dizem também que, quando Sócrates foi acusado,
Lísias, afamado orador conhecido do filósofo, elaborou uma defesa e deu-a para
Sócrates. O filósofo então leu e declarou: "Um belo discurso, Lísias, mas
não é adequado ao meu caso". Isso porque o discurso era mais forense que
filosófico.
São essas algumas das fontes e testemunhos sobre
Sócrates no que tange à leitura e escrita. Certamente há mais relatos, mas
creio bastar para termos uma noção mais precisa de Sócrates, não cometendo, nos
dias de hoje, mais um crime contra o filósofo pintando uma imagem dele que não
corresponde tal como seus acusadores, no passado, fizeram.
Por fim, seria no mínimo ilógico Sócrates, possuindo
o domínio da dialética, sendo o mais sábio filósofo grego, aclamado como tal
pelo Deus de Delfos, não saber ler e nem escrever; o que teria um agravante
ainda maior se lembrássemos das crianças gregas aprendendo, ainda em sua juventude,
a leitura e a escrita enquanto Sócrates, suponhamos, homem feito e renomado fosse ignorante. No
entanto Sócrates, como mostrado nos relatos, possuía conhecimento suficiente das letras, ainda que nada diretamente dele tenha sido preservado para a posteridade em forma de textos.
Muito bem, gostei da aula.
ResponderExcluirFosses foram explicitos.